35 turmas e mil alunos: a exaustiva rotina de uma professora em MG
Matéria do UOL ECOA destaca relatório “Volume de trabalho dos professores dos anos finais do Ensino Fundamental”, publicado em outubro de 2021 pelo D³e em parceria com a Fundação Carlos Chagas (FCC).
Leia a matéria abaixo (ou no ECOA UOL clicando aqui):
Quarenta e três quilômetros separam Carandaí e Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais. Para Dayana Vieira de Rezende Silva, não há exagero em chamar a estrada que liga as cidades de “terceira casa”.
A primeira é a sua própria, em Carandaí. A segunda são as salas de aula em que ela cumpre uma rotina semanal de 35 horas – contando planejamento, reuniões obrigatórias e avaliação, o total pode chegar a 55,60 horas. A terceira é a pista da BR-040, percorrida num HRV por cerca de 8 horas em ambos os sentidos de segunda a sexta-feira. São 20 mil quilômetros rodados a cada ano e mais de 50 tanques de gasolina só para ir trabalhar.
Dayana é professora de Artes do 5º, 6º e 7º anos nas redes municipais das duas localidades. A coluna conheceu sua história pela primeira vez em 2015. Na ocasião, a revista Nova Escola publicou um perfil de Dayana com números ainda mais superlativos: 7 escolas (hoje são 3), 41 turmas (hoje são 35), cerca de mil alunos (o total segue o mesmo).
Nas palavras dela, a situação atual é “mais tranquila”. Como ela está cursando mestrado na Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), o município de Carandaí autorizou seu afastamento até maio para poder se dedicar aos estudos.
A rotina exaustiva da mineira é um caso extremo, mas não incomum. Um relatório publicado em outubro de 2021 pelo grupo Dados para um Debate Democrático na Educação (D3e) e pela Fundação Carlos Chagas (FCC) compara a carga de trabalho dos professores brasileiros do Ensino Fundamental 2 com profissionais de outros países.
Enquanto Estados Unidos, França e Japão fixam seus professores em uma escola, melhorando sua qualidade de vida e de aula e fortalecendo o vínculo com a comunidade escolar, no Brasil os professores dessa etapa são contratados quase sempre em tempo parcial. Aí ficam pulando de uma escola para outra para completar a carga de trabalho.
Nesses três países, o total de alunos por professor não costuma ultrapassar 200. “No Brasil, 35% dos professores de Matemática e 60% de Língua Estrangeira têm mais de 200 alunos no total. Docentes de disciplinas com baixa carga horária no currículo tendem a se deslocar mais”.
É o caso de Dayana. Os efeitos negativos da sobrecarga incluem baixa qualidade das aulas, problemas com colegas e alunos, depressão, ansiedade e burnout.
Dayana já sofreu com alguns deles (vamos falar disso em breve), mas nada indica se tratar de uma pessoa cansada ou desmotivada.
No primeiro contato com a coluna, logo após a derrota do Brasil para a Croácia na Copa do Mundo, a professora falou animadamente de sua rotina e do desafio de dar aulas para cerca de mil alunos.
Uma das principais dificuldades é decorar o nome de cada um deles – tarefa “praticamente impossível”, diz a docente, que recorre ao auxílio de colegas para refrescar a memória em momentos como reuniões e conselhos de classe.
“Outro dia, conversando com uma pedagoga para fazer o mapeamento das turmas, falaram de um determinado aluno e eu tive que perguntar: ‘Quem é esse? Me ajuda a lembrar’”, conta, aos risos.
Outra luta é a necessidade de estar presente nos eventos extraclasse. “Preciso participar de todas as reuniões de pais, de todas as festas juninas. Minha carga horária extra é muito maior que as 35 horas”, diz.
Tanto deslocamento cobra várias contas. A mais literal delas diz respeito ao combustível do carro. Para complicar, a BR-040 é pedagiada. Cada ida e volta sai por 5,80 reais, sem direito a subsídio. “E tem um papo de que vai subir para 13 reais! Se for assim, vou precisar abrir mão das aulas em Lafaiete”, afirma.
Ao longo de 15 anos de magistério, Dayana sempre dizia que manteria esse ritmo enquanto aguentasse. Até que o corpo começou a reclamar. No ano passado, ela teve tensão muscular, dores de cabeça constantes e ATM (uma disfunção na articulação da mandíbula).
“Já estou me recuperando, mas precisei pagar todo o tratamento do meu bolso. Não tenho condições de pagar plano de saúde.”
Mesmo com a jornada desgastante, a educadora diz ter tempo para o lazer. Além de aproveitar os fins de semana para repor o sono atrasado dos dias de aula, ela gosta de ler e fazer viagens curtas pelo interior de Minas Gerais – Ouro Preto é um dos destinos preferidos.
“Mas não me desconecto totalmente. Costumo levar o notebook para fazer material para aulas e trabalhar na documentação para a coordenação e a direção.”
A condição de solteira que divide a casa com os pais é o que permite esse tempo livre. Dayana não precisa se preocupar com as tarefas domésticas, como cozinhar, lavar as roupas etc. “Se eu não morasse com os meus pais, não conseguiria manter esse ritmo. Eu já teria baixado a bola um pouco”, admite.
Outra questão é o salário. Sem entrar em valores exatos, a docente diz que seus rendimentos mensais brutos giram na casa dos 3 e 4 salários mínimos (algo entre 3.906 e 5.208 reais). Ela se queixa da desvalorização do magistério, mas diz que já conhecia esse cenário quando optou pela profissão.
“Eu acho que poderia estar melhor, poderia estar recebendo melhor, mas não reclamo porque eu sempre soube das condições. Eu posso tentar melhorar e aceitei pegar um monte de aulas querendo melhorar”, explica.
“O problema da carga horária ainda é algo invisível. No início da pandemia, os enfermeiros e os professores eram tidos como heróis. Depois, passou e acabou. Voltamos à realidade.”
À primeira vista, a decisão de iniciar um mestrado pode parecer um peso extra em uma rotina já tão estressante. Dayana concorda, mas aposta numa possível estabilidade profissional. Ela já havia feito uma pós-graduação em Mídias na Educação pela mesma UFSJ e decidiu partir para uma nova especialização visando a dar aulas num Instituto Federal, com salários e condições de trabalho melhores.
Mesmo a promessa de valorização da educação do novo governo Lula não empolga Dayana. “Eu trabalhei no período Lula e as mudanças mais positivas ficaram concentradas, sobretudo, nas universidades federais. Para a gente da educação municipal e estadual, não teve muito avanço. Gostaria que tivesse alguma melhoria, mas sou pessimista”.
Para a professora mineira, a realidade diária é acordar às 5h30, enfrentar estrada e sala de aula até as 18h para, no dia seguinte, começar tudo de novo. “Mesmo cansada, vou com alegria. Sorriso e bom humor vão ser sempre as minhas marcas”.
Link do relatório: https://d3e.com.br/